Fonte TecnoAlimentar – Dossier Digitalização no Setor Agroalimentar | Texto Carolina Mateus, Rui Alves e Carla Barbosa | Fotos Foodintech
Miguel Fernandes, tem 46 anos, é natural de Santo Tirso e o gosto pela natureza e pelas ciências fizeram-no seguir Engenharia Zootécnica, na Universidade de Trás-os-Montes. De seguida, decidiu aliar os estudos a uma experiência internacional e viajou até à Holanda, onde se especializou em Engenharia Agroindustrial. Atualmente é CEO da Foodintech, uma empresa que criou um software que controla toda a produção fabril. Em entrevista à TecnoAlimentar fala da sua história, dá-nos a sua visão sobre o setor agroalimentar, os desafios que tem ultrapassado e dos projetos futuros.
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TECNOALIMENTAR: Quando regressou da Holanda, qual foi o seu caminho até à criação da empresa?
MIGUEL FERNANDES: Regressei a Portugal com garantia de emprego, através de um estágio que tinha realizado, como representante de uma indústria para trading de carne suína. Apesar do salário graúdo que recebia, comparativamente aos salários portugueses, não foi uma fase feliz. Senti que a minha função como trader era redutora e pouco tinha a
ver com o papel de engenheiro. Apesar de tudo, foi nesta atividade que acabei por estabelecer uma rede de contactos e com eles novas oportunidades e propostas acabaram por surgir. Fui diretor de produção e qualidade numa indústria de carnes onde, em paralelo, frequentei um MBE (Master Business Engineering) na Universidade Católica. Nesta posição, percebi que a maior parte do meu tempo era consumido a lidar com questões que envolviam procedimentos com necessidade de informação documentada (na
altura, em papel). Isto motivou a que desenvolvesse ferramentas alternativas, com vista à desmaterialização destes sistemas de controlo e, claro, registo. Foi assim que, há 14 anos, surgiu a Foodintech. O projeto apenas começou comigo e um programador, hoje em dia meu sócio.
TA: Como surgiu a Foodintech?
MF: A Foodintech foi criada em 2008 e vem apoiada num projeto – o projeto Neotech, de 2004. Esse projeto deu algum aporte financeiro para constituir a empresa e recrutar os primeiros elementos, que ainda hoje cá estão. Basicamente, davam-nos dinheiro para nós materializamos uma ideia, ou um produto, e criarmos a empresa. O objetivo era criar um software de controlo total da produção nas suas diferentes perspetivas e dimensões: qualidade, segurança alimentar, produção, rastreabilidade, entre outros. Este software tem agora década e meia de desenvolvimento. Hoje somos líderes na agroindústria em software MES (Manufacturing Execution System).
TA: A evolução da Foodintech foi acompanhada com o crescimento da equipa. Quantas pessoas emprega atualmente?
MF: A nossa empresa tem, neste momento, 27 pessoas, com idades médias entre os 28 e os 30 anos. A empresa está dividida em quatro departamentos: o departamento comercial, o departamento de implementação – constituído por engenheiros funcionais, o departamento de suporte e o departamento de desenvolvimento do software FLOW M e camadas de integração. Temos mais de 100 clientes em seis países, maioritariamente agroindustriais. Temos mais de 100 000 horas de consultadoria de implementação do nosso software e temos mais de 150 000 horas acumuladas de desenvolvimento
da tecnologia de acordo com boas práticas industriais.
TA: Como funciona a vossa solução?
MF: Ela tem por base um conceito. O conceito passa por interpretar uma indústria, que tem um fluxograma de atividades, em processos. Basicamente, é como se dividíssemos uma fábrica em pequenas fábricas. Este objeto de processo é algo íntimo da nossa aplicação. Ele interpreta os mais variados processos, desde a receção até ao processo de embalamento, que constitui o produto final, passando em seguida para o processo de picking, (montagem de encomenda), e o processo de expedição. Seja qual for a indústria,
dentro daquilo que é a produção discreta, produção repetitiva de produtos, o conceito é sempre o mesmo. Diferentes indústrias usam a mesma aplicação. O código de programação é o mesmo. O que nós fazemos é parametrizar a aplicação de acordo com as necessidades de cada uma das indústrias, parametrizando os seus requisitos específicos. O que significa que nós não gerimos várias tecnologias, gerimos uma única tecnologia que tem um core e esse core permite ser adaptado a diferentes realidades industriais.
TA: O software está instalado nas empresas ou parte é gerido por vocês?
MF: O software pode ser instalado no cliente e na cloud, uma solução considerada híbrida. Uma das características do nosso road map é dotar o software de todas as funcionalidades de parametrização, de maneira a que o cliente tenha o máximo de autonomia sobre o mesmo. Isto é, o nosso negócio é tecnologia, apesar de nós termos uma camada de consultadoria substancial para implementar este software. Num processo de
implementação de um software, aquilo que é mais importante é a camada de consultadoria que vai apoiar o cliente a adaptar-se à tecnologia, considerando que a tecnologia foi desenhada para se adaptar ao cliente. Acima de tudo, vamos tentar “casar” fluxos de produção, informação, pessoas, processos, entre outros. Quem implementa esta tecnologia
não são engenheiros informáticos, mas sim engenheiros funcionais (ex. engenheiros alimentares, engenheiros industriais) que são, acima de tudo, pessoas que percebem três coisas muito importantes: percebem a tecnologia, percebem os processos do cliente e percebem o protocolo de implementação. Nós temos um road map de implementação, suportado num software que gere esse road map e onde, passo a passo, vai permitir esta transformação digital da indústria de um modo completamente regulado e estruturado. Um processo de implementação do FLOW M são 70% consultadoria e 30% tecnologia.
Há uma transformação total das empresas antes e depois de terem uma solução. Este trabalho é o mais complexo. O problema não está na nossa tecnologia, nem na tecnologia de integrar de máquinas, balanças, ou outros softwares, o problema está na capacidade e vontade do cliente em assumir este processo de transformação digital nas suas operações produtivas. A transformação digital requer a capacidade do cliente de perceber o que isso
é. A maturidade digital ou a vontade do cliente em se digitalizar é completamente condicionante na dinâmica de implementação. Os clientes que percebem o valor da informação em tempo real, o valor de um sistema integrado de informação do seu ecossistema produtivo, apresentam processos de implementação mais curtos e completos. É fundamental que o cliente queira “ser” digitalizado.
TA: Como é um cliente antes e depois da vossa intervenção? Em termos de potencial, qual é o impacto que tem dentro da empresa?
MF: Em primeiro lugar, um processo de implementação é complexo e depende muito de cada cliente. Um dos fatores chave, tal como referi, é a ambição do cliente. O processo de implementação e a respetiva exploração do potencial da aplicação difere de cliente para cliente. Nós temos vários clientes que têm equipas de engenharia que exploram a aplicação a um nível muito elevado. Estes clientes estão continuamente a interagir connosco para explorar, cada vez mais, as capacidades do sistema por nós implementado e são eles que mais contribuem para o desenvolvimento da aplicação. Temos que perceber que estamos a falar de industriais que têm as suas “personalidades”, têm as suas culturas e as suas dinâmicas. Apesar de termos um processo de implementação bem definido, temos que nos adaptar à dinâmica e capacidades do cliente. Os projetos decorrem com o objetivo de, no final, o cliente controlar a produção mas, nesta fase, nem todos usam todos os módulos/funções. Com o tempo e conforto, o cliente questiona “porque é que eu não faço mais isto na aplicação?”.
Para tirarmos partido de qualquer tecnologia são necessárias pessoas e procedimentos. Quando harmonizamos estes três componentes – tecnologia, pessoas e procedimentos – atingimos a dinâmica perfeita para tirarmos partido e valor da tecnologia.
A título de exemplo, tínhamos clientes que paravam uma semana, no final do ano, para fazer inventário. Com a correta utilização da tecnologia FLOW M, o inventário é permanente. Os empresários reconhecem as vantagens, ainda mais no setor agroalimentar, que trabalha ao segundo, ao cêntimo e à grama. Um desvio produtivo ou uma má decisão pode ter um impacto económico brutal. Estamos a falar de indústrias que, muitas vezes, ganham cêntimos nas suas unidades comerciais de venda de produto.
TA: Ao longo destes anos e num universo tão grande de empresas, nota diferenças na evolução da mentalidade do industrial do setor alimentar?
MF: Nota-se uma evolução brutal. Começa a haver uma renovação, isto é, os sucessores já têm outra preparação, outra sensibilidade, são mais recetivos e estão mais sensíveis à transformação digital. A valorização da digitalização de 2008 para os dias de hoje é muito substancial. Eu costumo dizer que, nos primeiros cinco anos, dei aulas. Tinha uma reunião com o industrial e mostrava-lhe como víamos a sua empresa a ser gerida. O industrial dava-me razão mas assumia, e bem, que para assumir este tipo de tecnologias é necessário ter um nível organizacional bem estruturado. Hoje em dia, fechamos negócios com 10 anos de pipeline comercial. Significa que demoramos 10 anos, desde a primeira reunião de apresentação da tecnologia, até ao fecho do negócio. O cliente gostou, mas não estava sensível e preparado para assumir os compromissos necessários para tirar valor da tecnologia. Ao longo desta década e meia, a sensibilidade do cliente foi evoluindo. Percebeu que tinha de investir, que tinha de gerir os seus dados de produção de uma forma integrada e em tempo real. É simples: aquilo que não se consegue medir, não se consegue gerir. Ainda há muito a evoluir.
TA: Ainda se lembra do impacto da Foodintech nos primeiros clientes? Mantém esses clientes?
MF: Posso dizer-lhe que o meu primeiro cliente não é um cliente, mas sim um grande amigo. É um explorador da tecnologia que, hoje em dia, está no nosso Top 10 de clientes, no que toca a tirar partido da tecnologia. A Soguima é um dos maiores players na indústria de bacalhau, a nível nacional, e arriscaram. Eu apresentei-lhes uma solução para a indústria das carnes, eles olharam para a solução e acreditaram no conceito da mesma e que nós íamos conseguir. Fomos muito esforçados, sabendo que numa start-up, muitas vezes, não se faz o que se quer, faz-se o que se pode. O cliente percebeu isso e confiou. E hoje, tenho a certeza que eles acham que foi uma boa aposta.
TA: É reconhecida a importância do apoio da Foodintech na indústria alimentar. Têm perspetivadas outras áreas de atuação ou trabalham apenas para o setor alimentar?
MF: Nós somos líderes na agroindústria, mas temos clientes na indústria química, na indústria farmacêutica, entre outras. Somos Foodintech Lda., mas pelo facto de começarmos a ser solicitados por outros setores, tivemos de fazer um rebranding e, hoje em dia, somos também conhecidos como FlowTech. Trabalhamos as duas marcas. Basicamente a nossa área industrial de conforto aplicacional são as indústrias de produção repetitiva.
TA: Atualmente, como é que as empresas chegam até vocês?
MF: Durante muitos anos, nós fazíamos ações comerciais diretas. Em paralelo, participamos numa série de ações em feiras, workshops, aulas em universidades. Em conjunto, estas ações foram a alavanca de angariação de vários clientes. Os clientes vão falando entre si e, hoje em dia, grande parte dos nossos clientes já são prescritos por outros clientes nossos, ou por parceiros. Se, durante muito tempo, houve uma ação direta ao mercado, neste momento, o mercado já vem ter connosco.
TA: Quais são as grandes diferenças de uma fábrica de há uns anos para uma fábrica atual?
MF: Antigamente, montava-se uma fábrica com as máquinas e com a tecnologia existente e aquela fábrica e aquela tecnologia eram viáveis economicamente durante décadas. Hoje em dia, isso desapareceu. Vivemos num mundo com uma dinâmica completamente fora de série: são os fornecedores, é a tecnologia que evolui, é a volatilidade do que acontece do ponto de vista geopolítico ou do ponto de vista de mercados, entre outros. Resumindo, aquilo que eu sei hoje, pode ser mentira amanhã. Isto implica que estes sistemas de informações têm que garantir a flexibilidade e a capacidade de reagir a um mundo altamente dinâmico e complexo.
TA: A Foodintech está alinhada com as atuais preocupações de sustentabilidade ambiental e energética? A gestão de resíduos e o consumo energético, também podem ser controlados por estes sistemas?
MF: Completamente. A aplicação é feita para gerir qualquer processo numa perspetiva de inputs e outputs. Acabámos de sair de um projeto europeu onde, em conjunto com a Conserveira Pinhais e o INESC TECH, monitorizámos aspectos conexos com a sustentabilidade: desperdícios, energia e água. Somos parceiros de vários projetos colaborativos onde as nossas plataformas digitais estão voltadas, não só para as questões de controlo de produção e rastreabilidade, mas também para suportar o tema da sustentabilidade. A capacidade que os sistemas MES permitem e a analítica do ecossistema produtivo levam à sustentabilidade ambiental. Conexo com a economia circular, onde não há desperdícios, os mesmos devem ser considerados matérias-primas de outra indústria qualquer. No entanto, não devemos esquecer que as indústrias existem como negócio. Para ganhar dinheiro, devem continuamente procurar produzir mais com menos e/ ou o mesmo mais depressa. Sem sustentabilidade financeira numa indústria é difícil que a mesma se preocupe com aspetos ambientais, sociais, etc.
TA: Um dos temas mais abordados dos últimos tempos tem sido a Indústria 4.0. Como olha para essa nova realidade?
MF: Hoje fala-se em Indústria 4.0 e parece que é qualquer coisa que se mete ou compra aos quilos ou aos litros. Esta nova revolução industrial, de um modo simplificado, resume-se, para mim, numa palavra: “conetividade”: pela integração de pessoas, sistemas, máquinas, materiais, parceiros, … conectar todo o ecossistema produtivo. Dentro desta Indústria 4.0 encontramos várias tecnologias e tem que ser percebido que a Indústria 4.0 não é um sítio, é um caminho. Cada indústria e cada empresa têm de assumir uma estratégia de incorporação ou têm de definir um road map de incorporação de tecnologia ao nível da Indústria 4.0. Nós e outros players, defendemos que a incorporação de um sistema de informação vertical MES, constitui o esqueleto base de uma estratégia de Indústria 4.0.
TA: Neste contexto, como avalia a capacidade de uma indústria se tornar numa Indústria 4.0?
MF: Temos de fazer quatro perguntas a um industrial: tem stock em tempo real? Tem rastreabilidade em tempo real? Sabe o que está a acontecer na sua fábrica, neste momento? Sabe qual é o custo industrial dos produtos produzidos, com um nível de certeza substancial, em tempo real? Estas quatro perguntas bastam para testar o nível de maturidade digital de uma empresa. A maioria das vezes não conseguem responder a estas questões. A inteligência artificial faz parte do futuro, mas muitas vezes utilizo esta expressão: Antes de resolver o problema de aterrar na Lua, tivemos que resolver o problema de sair da Terra. Quanto mais depressa evoluirmos em aspetos de base, mais depressa podemos olhar para tecnologias mais avançadas e enquadradas na estratégia da Indústria 4.0. É bom termos uma visão, mas é muito mais importante termos uma estratégia de materialização dessa visão. Em Portugal fala-se numa Indústria 4.0, mas a maioria dos clientes não tem consolidada uma Indústria 3.0. E isto não acontece só em Portugal, acontece em muitos países desenvolvidos. É importante que as empresas percebam o que está em cima da mesa e assumam uma estratégia. Numa empresa que trabalha mal, ou tem maus processos, não há tecnologia que resista.
TA: Foram convidados, para participar, este ano, no Hannover Mess, uma das maiores feiras dedicada à indústria, onde Portugal foi o país patrocinador. Como foi essa experiência?
MF: Aterrei em Marte. Deu bem para perceber a dimensão e a complexidade das tecnologias que existem ao serviço das indústrias a nível mundial. Mas vim de lá, apreensivo. Tenho a certeza que a maior parte das tecnologias que eu vi, não tem aplicação cá de imediato, porque há um estado de maturidade digital que ainda não permite absorver aquele tipo de tecnologias. A indústria portuguesa tem de acelerar este processo de transformação digital, para poder passar a outro patamar de assimilação tecnológica.
TA: Quais são os próximos desafios da empresa?
MF: Em primeiro lugar, continuar o crescimento interno e consolidar a nossa posição no mercado português. Acho que ainda há muito trabalho para fazer. Em segundo lugar, materializar uma estratégia de internacionalização, que é isso que está a acontecer. É o meu grande desafio termos um papel global.